ZH 16/11/2013
Morto há 130 anos, o escritor Qorpo-Santo continua sendo um nome a ser descoberto
Tido como louco, depois alçado à condição de precursor do teatro do absurdo, o escritor gaúcho ainda precisa ser lido e devidamente compreendido.
Fábio Prikladnicki fabio.pri@zerohora.com.br
Sem homenagens de relevo, os 130 anos de morte de Qorpo-Santo (1829 – 1883) foram completados no dia 1º de maio. A ausência do dramaturgo, poeta e escritor no calendário cultural sinaliza que este gaúcho de Triunfo ainda é – para não perder o jogo de palavras – um corpo estranho na literatura brasileira.
Qorpo-Santo – batizado José Joaquim de Campos Leão – é uma figura do século 19 redescoberta cem anos depois, por iniciativa do professor Aníbal Damasceno Ferreira, morto em abril de 2013. Na década de 1950, ele se encarregou de encontrar volumes da obra do escritor com colecionadores e passou a divulgá-la entre a intelectualidade porto-alegrense. Seu grande achado foi um volume com 17 peças (uma delas não concluída) que representa, até hoje, a parte mais conhecida da produção de Qorpo-Santo.
A primeira montagem veio em 1966: um espetáculo com três desses textos, sob direção de Antônio Carlos de Sena, amigo de Aníbal. Foi um sucesso de público e de crítica. Depois, o professor de literatura Guilhermino Cesar tornou-se um dos divulgadores dessa obra dramática. Uma segunda montagem do espetáculo de Sena, apresentada no Rio, em 1968, selou o reconhecimento nacional. Qorpo-Santo acabou saudado como precursor do teatro do absurdo. À época, o crítico Yan Michalski, referência no país, escreveu que a redescoberta do autor "torna parcialmente obsoletos todos os livros de história da dramaturgia brasileira".
A ideia de Qorpo-Santo como precursor do teatro do absurdo havia inspirado o espetáculo que marcou a estreia mundial de sua obra. Designação que se refere à dramaturgia de autores europeus como Beckett, Ionesco e Arrabal, o teatro do absurdo estava em voga na Capital. O diretor Antônio Carlos de Sena havia sido assistente de direção de As Cadeiras e ator em Jacques ou a Submissão, ambas escritas por Ionesco e dirigidas por Fausto Fuser, professor do Curso de Arte Dramática (atual Departamento de Arte Dramática da UFRGS). Sena também atuara em Piquenique no Front, de Arrabal, com direção de Linneu Dias. Antes, segundo Sena, houve montagens em Porto Alegre e em Caxias do Sul de A Cantora Careca, a obra mais conhecida de Ionesco. – O público sempre reagia muito bem às peças do teatro do absurdo, até porque eram muito engraçadas. E a do Qorpo-Santo também. O público ria do início ao fim – lembra o diretor (leia seu depoimento sobre a montagem de 1966 na página 8).
Flávio Oliveira, compositor que criou a trilha sonora original do espetáculo, completa: – Nós reconhecemos a originalidade de Qorpo-Santo e a sua importância, na contramão de certo ranço acadêmico-literário da época e à revelia de certa intelectualidade que não enxergava a sua importância. Qorpo-Santo brasileiro O rótulo de precursor do teatro do absurdo era uma maneira de legitimar a escrita de Qorpo-Santo, tornando sua poética atual nos anos 1960. Passado o tempo, vieram novas hipóteses.
No livro Qorpo-Santo – Surrealismo ou Absurdo (editora Perspectiva), o pesquisador Eudinyr Fraga associou-o ao surrealismo, outro movimento originário da Europa. Estudiosos de sua obra questionam, no entanto, se não seria o caso de reconciliar o autor com a tradição brasileira. Um dos pioneiros nesse esforço foi Flávio Aguiar, professor aposentado de literatura da USP, que publicou, em 1975, o livro Os Homens Precários (A Nação/Instituto Estadual do Livro-RS), resultado de sua dissertação de mestrado. – Nela, eu demonstrei, e não apenas afirmei, que o teatro de Qorpo-Santo estava solidamente ancorado na tradição teatral brasileira do século 19, na comédia de costumes, no teatro realista, nas farsas portuguesas de Antonio José, que na época eram consideradas parte do teatro brasileiro. Só que ele misturou tudo, num coquetel extremamente original para a época, que não foi nem poderia ser compreendido. Nesse sentido, sim, ele foi um precursor das vanguardas do século 20 – diz Aguiar
. Já a pesquisadora Denise Espírito Santo defende que o autor pode ser associado a uma certa tradição do romantismo do século 19: – O romantismo brasileiro é muito eclético. Temos uma vertente que o (crítico e historiador da literatura) Antonio Candido chama de poesia pantagruélica, que inclui autores como Álvares de Azevedo e Bernardo Guimarães, que eram poetas mais lunares. Muitos faziam uma poesia que tinha um sentido totalmente jocoso, um humor negro. Qorpo-Santo está inscrito, em certa maneira, dentro de uma tradição romântica que é essa do fora do lugar, do fora do esquadro. Denise tem se dedicado a colocar em circulação outras vertentes da obra do autor, para além de sua conhecida dramaturgia. Em 2000, organizou Poemas (Contra Capa) e, em 2003, Miscelânea Quriosa (Casa da Palavra), com uma seleção de aforismos, textos autobiográficos e outros excertos. Em 2014, pretende publicar um volume exclusivamente de aforismos. Toda a produção que se conhece do autor vem da Ensiqlopèdia ou Seis Mezes de Huma Enfermidade. São nove volumes impressos pelo próprio Qorpo-Santo em 1877 que reúnem peças de teatro, poemas e outras produções. Desta coleção, são conhecidos seis volumes, que estão disponíveis para leitura, na íntegra, em versão fac-similar no site da biblioteca da PUCRS (www.pucrs.br/biblioteca/qorposanto).
Leda Maria Martins, professora de literatura e de teatro da UFMG e autora de O Moderno Teatro de Qorpo-Santo (Editora UFMG), aponta a necessidade de uma nova edição impressa da Ensiqlopèdia que oportunize uma visão global: – Precisamos reeditar todo o Qorpo-Santo. Se houver outros pesquisadores interessados, me coloco à disposição. É ótimo ter estudos sobre aspectos de sua obra, é fundamental para recolocá-lo na agenda do teatro brasileiro. Mas precisamos de uma visão mais geral. Precisamos tomar a Ensiqlopèdia como objeto de estudo. Falta essa dimensão da criação em sua transversalidade, pois nisso ele também foi inovador. Lúcido alucinado A apreciação da obra ainda é turvada pela biografia. Considerado louco em sua época, Qorpo-Santo teve a qualidade de sua produção questionada – um espectro que assombra sua memória até hoje.
Um dos aspectos que contribuíram para isso foi sua iniciativa de criar uma reforma ortográfica da língua portuguesa baseada na pronúncia das palavras. Daí a inusitada grafia ("qorpo", e não "corpo") que utilizou em seu próprio codinome – aliás, decorrente de uma iluminação espiritual que acreditou ter recebido em determinado momento. Essa mitologia levou Qorpo-Santo a se tornar, ele mesmo, um personagem: parte de sua história é recuperada, com o recurso da ficção, no romance Cães da Província (1987), de Luiz Antonio de Assis Brasil. O livro vai inspirar uma peça, dirigida por Inês Marocco, que deve estrear em 2014 e que contará também com trechos de textos de Qorpo-Santo.
Também no ano que vem, devem entrar em cartaz montagens dirigidas pela pesquisadora Maria Aparecida Ramos Dias, entre elas Eu Sou Vida; Eu Não Sou Morte e Lanterna de Fogo. Com produção da Fundação Cultural Qorpo-Santo, em Triunfo, os espetáculos estrearão na cidade natal do autor e depois devem ter sessões em Porto Alegre. – Em Triunfo, os 130 anos de morte não passaram em branco. Realizamos saraus, debates. E estamos criando um grupo de estudos – diz Maria Aparecida. Entre as montagens de textos de Qorpo-Santo a que o público gaúcho pôde assistir nos últimos tempos, estiveram Dr. QS – Quriozas Qomédias (2005), do grupo gaúcho Depósito de Teatro, com direção de Roberto Oliveira (montagem que arrematou cinco Prêmios Açorianos de Teatro da prefeitura de Porto Alegre, incluindo melhor espetáculo), e, mais recentemente, Labirinto, produção carioca do diretor Moacir Chaves apresentada no Porto Alegre Em Cena de 2011. Em um artigo reunido no livro Coruja, Qorpo-Santo & Jacaré (L&PM), lançado neste ano, o professor de literatura da UFRGS
Luís Augusto Fischer anota sobre a alegada loucura do autor: "O depoimento de dois contemporâneos converge para o desenho de uma figura esquisita, ao modo dos loucos que povoam as cidades. Em resumo, ele não foi reconhecido como um escritor, em nenhum sentido. Era um alucinado que escrevia". Falando à reportagem, Fischer defende: – Como há essa pecha em torno dele, parece que não temos acesso direto a sua obra. Esse acesso é mediado. Mas não precisamos criar rótulos. Talvez seja melhor ler sua obra desprevenidamente. Sabemos que ele queria se comunicar. Fez jornal e escreveu teatro. São indícios de que queria entrar no circuito. Temos que parar de enquadrá-lo e começar a analisá-lo.
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