domingo, 24 de abril de 2011

Fundação Cultural Qorpo-Santo comemora o aniversário do dramaturgo projetando um espetáculo apoteótico para 2014


                                                           
                                                Gladis Maia



A luta de Qorpo-Santo para inscrever seus escritos nos circuitos da cultura, publicá-los, enviá-los à posteridade, fazê-los viver para além de si mesmo e buscar seus interlocutores, não foi leve.  Foram tortuosos os caminhos que esta produção trilhou para chegar viva ao século XXI.
                                                                                              
                                                                                              

  

 Na segunda metade do século XIX, no Rio Grande do Sul, inicia-se a trajetória de um criador que não foi  em seu tempo tomado como artista. Um homem que viveu a experiência do estigma de carregar a tarja de louco, que conheceu o primeiro manicômio brasileiro e lá mesmo produziu parte de sua obra que permaneceu por cem anos esquecida.

Ao nos aproximarmos da sua história temos a sensação de que é pura ficção, que nos chega através de suas próprias palavras inscritas na obra. No segundo volume de sua 'Ensiqlopédia ou seis mezes de huma enfermidade', Qorpo-Santo nos apresenta sua autobiografia. Conta que nasceu na Vila do Triunfo, em 1829. Aos 11 anos, após a morte do pai, veio para a capital da província estudar gramática e trabalhar. Nas décadas de 1850 e 1860, habilitou-se para o magistério público, lecionou,dirigiu escolas e fundou um colégio. Casou-se, foi eleito vereador da câmara municipal de Alegrete, nomeado subdelegado de polícia e recebeu o grau de Mestre.

Nesse mesmo período, o autor  escreveu alguns textos para jornais, e, quando estes passaram a não publicar mais seus escritos, começou a publicar o seu próprio jornal, 'A Justiça', durante alguns meses.

A partir de 1862, dedicou-se também à construção de uma nova ortografia para a língua portuguesa. A reforma ortográfica que propunha destinava-se a simplificar a escrita e combater a desordem ortográfica vigente à época. Em 1868 publicou em 'A Justiça', um documento com regras do seu sistema ortográfico, com o qual escreveu sua 'Ensiqlopédia'.

Aos 35 anos, sofreu a primeira intervenção da justiça que solicitou um exame de sua sanidade mental. A partir daí houve um longo processo até sua interdição, quatro anos depois. Em 1968 foi enviado ao Rio de Janeiro pelo Juiz de Órfãos e Ausentes para ser examinado por especialistas da capital. Foi internado no Hospício D. Pedro II, onde recebeu uma avaliação médica que fazia referência ao diagnóstico de monomania em suas formas intermediárias.

Qorpo-Santo ficou, então, por um período, recolhido na Casa de Saúde Doutor Eiras, no Rio de Janeiro.  Sua excitação mental, sua necessidade de tudo escrever, se adequava bem ao diagnóstico de monomania.

O teatrólogo saiu desta internação com um novo relatório, que conclui por sua aptidão para gozar de seu livre-arbítrio. No entanto, de volta a Porto Alegre, lhe foi solicitado que se submetesse a novo exame de sanidade. Desta vez, Qorpo-Santo se recusou a comparecer. Em virtude de seu não comparecimento, o juiz o interditou, declarando-o inapto para gerir sua pessoa e seus bens e nomeando para ele um tutor.

Mesmo cercado de sarcasmo e descrédito, durante o período em que se batia contra a psiquiatria e a patologização de seu modo de existência, Qorpo-Santo dedicava-se a uma atividade literária febril. Escreveu sua 'Ensiqlopédia ou seis mezes de huma enfermidade', provavelmente durante a década de 1860.

 Em 1877 conseguiu autorização para abrir a Tipografia Qorpo-Santo e imprimir seus escritos, que não eram mais aceitos em outros jornais. O resultado são nove volumes de uma produção caudalosa e desconexa, feita de: versos, relatos, provérbios, reflexões sobre política, moral, ética jornalística, anúncios, bilhetes, confissões autobiográficas, comédias, projetos literários, interpretações dos Evangelhos. Enfim, fragmentos que, no seu conjunto, apresentam uma vastíssima visão de mundo.

Em 1925, na primeira referência  não contemporânea à produção de sua obra,  um crítico fez o escritor gaúcho participar da polêmica que se instaurou no Brasil a partir da Semana de Arte Moderna de 1922.

 Qorpo-Santo foi utilizado pela crítica de arte brasileira como recurso para depreciar obras modernas pelo seu suposto caráter mórbido e louco. Em três artigos publicados naquele ano, Roque Callage afirmou seu repúdio às idéias modernistas e, para desqualificar os poetas modernos, reivindicou para Qorpo-Santo, em tom irônico, "a glória de ter sido o verdadeiro fundador da escola futurista no Brasil".

 Para fundamentar a afirmação, transcreveu versos de Qorpo-Santo e os comparou aos de Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Guilherme de Almeida. Após assinalar a correspondência entre os poetas, vendo na produção de todos eles desordem, falta de lógica, confusão mental, o crítico concluiu que o modernismo é fruto de uma "demência coletiva" e que seus poetas chegavam a ser mais malucos que Qorpo-Santo.

Em 1930, em uma entrevista de Múcio Teixeira, dada ao Globo do Rio de Janeiro, mais uma vez a obra do escritor gaúcho foi utilizada para desqualificar a poesia moderna, por meio da indicação de proximidades entre as duas produções. Múcio Teixeira lamentava que os poetas da nova geração seguissem os passos do maluco rio-grandense.

Mas se alguns críticos do modernismo conheciam a obra de Qorpo-Santo, os modernistas, eles próprios, não se interessaram por pesquisar a produção do escritor gaúcho. Perderam a oportunidade, pois o mais surpreendente é que, se retomamos as poesias de Qorpo-Santo, descobrimos, de fato, muitas ressonâncias com as propostas modernistas. Os passadistas tinham razão, mas seu argumento teria de ser colocado de cabeça para baixo. Não era a produção dos modernistas que não tinha valor, mas a obra de Qorpo-Santo que trazia traços de certa modernidade.

Com efeito, a escrita automática, o verso livre, as colagens de fragmentos textuais heterogêneos, o humor, a simplificação, a adoção de uma linguagem altamente coloquial e a incorporação de elementos do cotidiano na prosa e na poesia, característicos da obra de Qorpo-Santo, são grandes armas do modernismo nos seus primeiros tempos, quando a sátira e a paródia invadiram os manifestos, as revistas e os discursos narrativos e poéticos.

Outras características que foram fontes de pesquisa e investigação poética de autores como Oswald de Andrade e Mário de Andrade, tais como o desnudamento dos procedimentos, e a atitude de autorreflexão contida na própria obra, também se fizeram presentes em Qorpo-Santo como quando discute rima e metrificação dos versos, nos seus próprios poemas.

Nos anos que se seguiram a estas críticas que associavam a produção de Qorpo-Santo a dos modernistas, seus escritos foram esquecidos e só voltaram a ser visitados na década de 1960. Após um século de sua hibernação, enterrados em antigas bibliotecas ou guardados em coleções particulares, como raridade, no início da década foram descobertos por um grupo de intelectuais, professores e alunos universitários de Porto Alegre.

O interesse inicial voltou-se para as peças de teatro e, na noite de 26 de agosto de 1966, três delas estrearam em Porto Alegre. A montagem foi muito bem recebida pelo público, e a temporada, inicialmente prevista para cinco dias, foi estendida, com platéias sempre lotadas.

No ano seguinte, Décio Pignatari, em passagem por Porto Alegre, travou contato com o grupo que havia realizado essa montagem e conheceu o texto das três peças encenadas. Sua impressão foi a de que o teatro de Qorpo-Santo era um teatro de costumes que havia sofrido uma "desregulagem de registro", configurando um antiteatro que, se lembrava Ionesco, tinha parentescos também com Artaud.

Em fevereiro de 1968, a dramaturgia de Qorpo-Santo estreava no Rio de Janeiro com as peças 'Mateus e Mateusa' e 'Eu sou vida; eu não sou morte', colocando os cariocas em contato com a obra de um autor que Yan Michalsky considerou verdadeiramente sensacional. Este crítico, que estava presente na estreia, escreveu sobre a montagem no Jornal do Brasil, chamando a atenção para a precocidade, o modernismo, a ousadia de Qorpo-Santo.


Em 1969, Guilhermino César organizou a primeira publicação das peças de Qorpo-Santo. Em 2000, suas poesias inéditas foram reunidas por Denise Espírito Santo e, em 2001, tivemos a publicação do Teatro Completo de Qorpo Santo por Eudynir Fraga.

                                     

TRIUNFO DE QORPO-SANTO




Este é o nome do projeto da Fundação Cultural Qorpo-Santo, coordenado pelo professor Francisco Goulart Jahn,  cujos  primeiros passos  foram dados ainda no final do ano passado, quando o mesmo palestrou sobre o tema,  por ocasião da Feira do Livro, quando foi lançado o blog da entidade ( http://fundacaoculturalqorpo-santo.blogspot.com/ ) . Em linhas gerais trata-se de um trabalho envolvendo a comunidade em geral, mais especialmente os estudantes, com escrita, teatro e cinevídeo, em todas as suas especificidades.

 A epopéia que foi a vida e constitui a obra de Qorpo-Santo,  delineada neta matéria,  por si só justifica o  projeto, que visa  dar visibilidade a vida/obra de Qorpo-Santo, na sua terra natal, para que as crianças nos lares e nas escolas já cresçam cônscias do seu valor e tenham o orgulho de estudar, interpretar e divulgar a maneira singular em que viveu o autor e a produção de sua intempestuosa obra literária. É o triunfo, a aclamação  de Qorpo-Santo em  sua própria terr. É o Triunfo de Qorpo-Santo, de Bento Gonçalves e de tantos outros expoentes que fazem parte da nossa cultura e história.





 O projeto – que já recebeu o aval e o apoio do Conselho Municipal de Cultura, da Secretaria de Cultura e Turismo e da Secretaria de Educação -  pretende instituir, como pontapé inicial do processo criativo um concurso literário permanente de textos inspirados na dramaturgia de Qorpo-Santo, junto às escolas e a comunidade. Com esta finalidade e para dar também uma visão geral da envergadura do projeto, ficou agendado, junto à Secretaria de Educação do município, uma breve intervenção do professor Francisco, na reunião com os diretores das escolas municipais, que acontecerá na manhã do próximo dia 5 de maio, na Câmara de Vereadores. 

NOTA: esta matéria também foi publicada no jornal 
O Farrapo,  no dia 22 /04/2011

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